sexta-feira, 25 de março de 2016

Exegese de Mateus 23:37 - por Vicent Cheung

Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram.MATEUS 23:37
                
Quando os Arminianos atacam as doutrinas bíblicas da soberania divina, eleição, reprovação, e assim por diante, este é um dos versículos que eles frequentemente mencionam para apoiar a posição deles. O que Jesus “queria” não foi realizado porque as pessoas “não estavam querendo”. Supostamente isto mostra que o homem possui um livre-arbítrio que pode se opor à vontade divina, de forma que o desejo de Deus pode finalmente ser frustrado, e sua graça pode ser resistida com sucesso. O que se segue não oferecerá uma exposição positiva do sistema bíblico, mas apenas mostrará que este versículo não pode ser usado para apoiar o Arminianismo. 

Quanto ao esquema chamado Calvinismo, podemos distingui-lo entre duas formas. Chamaremos um de visão bíblica ou consistente, e o outro de visão popular ou inconsistente.

O Calvinismo consistente afirma com a Escritura que a soberania divina é incompatível com a liberdade humana, e visto que a Escritura ensina que Deus é absolutamente soberano, isto exclui e destrói completamente a liberdade humana. O homem não tem nenhum livre arbítrio; ele não é livre de forma alguma. É verdade que o homem exerce sua vontade – ele faz decisões – mas sua vontade não é livre. Antes, sua vontade – como ele faz decisões e quais decisões ele faz – é direta e constantemente controlada por Deus tanto para o bem como para o mal, tanto para a fé como para a incredulidade. E Deus é justo por definição em todas as ações que ele realiza sobre as criaturas. Eu já ofereci exposições completas deste esquema bíblico em outros lugares.

Então, há a forma popular de Calvinismo. Este é a visão inconsistente que diz que a soberania divina e a liberdade humana são “compatíveis” em algum sentido; que a responsabilidade moral pressupõe em alguma medida ou sentido uma “autodeterminação”; que Deus tem desejos que contradizem uns aos outros, que Deus faz com que os decretos divinos causem coisas o que ele deseja, talvez para estabelecer o que ele mais deseja; que Deus pode decretar a reprovação de indivíduos, tornando impossível que eles creiam, mas ainda oferecer “sinceramente” a salvação a eles, se eles puderem crer; que Deus de alguma forma governa o mal, mas não tem relação causativa direta para com ele; que Adão foi criado inocente e sem mal, mas pôde de alguma forma realizar o mal, sem Deus fazer com que ele agisse assim; que podemos afirmar a realidade do mal, mas negar que Deus exerce algum poder causativo direto sobre ele e ainda assim evitar de alguma forma cair num deísmo ou dualismo; que podemos afirmar ambos os lados de uma contradição “aparente”, e que a Escritura ensina doutrinas “aparentemente” contraditórias que não são contradições reais na mente de Deus. Não faremos nenhuma tentativa para defender este pacote antibíblico e irracional de confusão.

Começaremos observando o contexto no qual nosso versículo aparece. Aconselho que você leia Mateus 23 em sua inteireza antes de continuar lendo, mas se te faltar a paciência, pelo menos leia-o após ler esta exposição. Isso te ajudará a captar melhor os pontos que estabeleceremos. Lucas 13:34 é um versículo paralelo. Ali o contexto, em termos do assunto levantado pelos versículos em volta, é similar o suficiente, de forma que ele não demanda um tratamento separado. E por causa disto, eu não prestarei nenhuma atenção a este outro versículo em nossa discussão. Após termos completado nossa discussão sobre Mateus 23:37, você não terá nenhum problema com Lucas 13:34.

O capítulo começa, nos versículo 1-12, com Jesus fazendo algumas considerações sobre a hipocrisia dos escribas e fariseus. Ele diz que até onde eles ensinavam a lei, as pessoas deveriam obedecer. Então, ele adiciona: “Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam. Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los” (v. 3-4).

Nos versículo 13-32, ele pronuncia sete “ai’s” sobre eles, citando as acusações que ele tinha contra eles juntamente com cada “ai”. Esta porção do capítulo é essencial para um entendimento apropriado do versículo 37. À medida que você ler estes versículos, observe como Jesus pronuncia um “ai” após o outro, e observe a intensidade com que ele faz isso. Então observe a quem ele está dirigindo estes “ai’s” de uma maneira dura: “Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas!”. Observe todas as ocorrências nas quais ele dirige suas declarações a “vocês” – os escribas e fariseus. Preste atenção especial ao versículo 13, que diz: “Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo”.

Então, nos versículos 33-36, ele os identifica com aqueles que, por toda a história de Israel, tinham matado os profetas que Deus enviava ao povo. Ele diz: “E, assim, sobre vocês recairá todo o sangue justo derramado na terra... Eu lhes asseguro que tudo isso sobrevirá a esta geração” (v. 35-36). Sem dúvida, ele está se referindo à destruição iminente do templo. O contexto comprova isto, visto que vários versículos adiante, lemos: “Jesus saiu do templo e, enquanto caminhava, seus discípulos aproximaram-se dele para lhe mostrar as construções do templo. ‘Vocês estão vendo tudo isto?’, perguntou ele. ‘Eu lhes garanto que não ficará aqui pedra sobre pedra; serão todas derrubadas’” (Mateus 24:1-2). Esta predição foi cumprida em 70 d.C., isto é, na mesma geração a qual Jesus ministrou e pregou, e a mesma geração que o assassinou. As pessoas foram massacradas e o templo foi destruído.

Jesus não mudou o assunto quando ele chega ao versículo 37. O versículo seguinte ainda se refere à destruição do templo: “Eis que a casa de vocês ficará deserta” (v.38). De fato, como já observamos, ele ainda está no mesmo assunto com o qual Mateus 24 começa. E é com este pano de fundo em mente que deveríamos ler nosso versículo: “Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram”.

Aqui “Jerusalém” não se refere à cidade física, ou a toda pessoa considerada individualmente na cidade. “Jerusalém” é dita ser aquela que “mata os profetas”, e no contexto, aqueles que matariam os profetas são os líderes do povo – incluindo os escribas e fariseus. Eles imitam seus antepassados que “assassinaram os profetas” (ver v. 29-32). No versículo 34, Jesus diz que ele está prestes a enviá-los profetas e mestres, e estes lideres iriam maltratá-los assim como os seus antepassados maltrataram os antigos profetas: “Por isso, eu lhes estou enviando profetas, sábios e mestres. A uns vocês matarão e crucificarão; a outros açoitarão nas sinagogas de vocês e perseguirão de cidade em cidade”.

Quanto aos “filhos” no versículo 37, naturalmente eles eram as pessoas que viviam sob a autoridade e direção destes líderes. Líderes religiosos e políticos são algumas vezes chamados de “pais” na Escritura (Atos 7:2, 22:1), e aqueles sobre quem eles exercem poder e influência são chamados de “filhos” (Mateus 12:27; Isaías 8:18). Deveríamos observar primeiro, então, que este versículo não pode se referir à disposição ou à fé de indivíduos para aceitar o evangelho, pois de outra forma o versículo deveria dizer: “Eu quis reunir vocês... mas vocês não quiseram”, ou “eu quis reunir os seus filhos... mas seus filhos não quiseram”. Mas o versículo diz: “Eu quis reunir os seus filhos... mas vocês não quiseram”. Não foram os “filhos” que resistiram, mas o “vocês” que resistiram para evitar os “filhos” de serem reunidos. O versículo, portanto, está se referindo à mesma coisa já mencionada no versículo 13: “Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo”.

Os Arminianos podem afirmar a liberdade humana e negar que Deus controla diretamente uma pessoa para crer ou descrer. Mas tendo negado o controle a Deus, supomos que nem mesmo eles são tolos o suficiente para então voltar e atribuir a líderes humanos políticos e religiosos o controle interno direto sobre as mentes do povo, como se os fariseus possuíssem maior controle do que Deus sobre as pessoas, de forma que eles poderiam ter misericórdia de quem quisessem ter misericórdia, e endurecer a quem eles desejassem endurecer. Não, é evidente que os versículos 13 e 37 estão se referindo a como os líderes humanos impediam os profetas sobre um nível puramente humano e externo, para evitar que a mensagem deles chegasse até o povo, e para evitar que o povo abraçasse tal mensagem. Jesus está falando sobre uma influência social e externa, não de um poder metafísico e interno.

Segue-se, então, que o “eu quis” no versículo 37 está se referindo ao relacionamento de Jesus com aqueles líderes e o povo deles sobre um nível humano e externo. Não há nenhuma indicação neste versículo de que o desejo divino ou o decreto divino pode ser resistido com sucesso simplesmente porque alguém “não está querendo”. A Bíblia é clara sobre o ensino de que, se alguém está indisposto, é porque Deus o tornou indisposto (João 12:40; Romanos 9:18, 11:7), e se alguém está disposto, é porque Deus o tornou disposto (João 6:44, 65). Ninguém que Deus torne indisposto pode vir (João 6:44), e ninguém que Deus torne disposto pode recuar (João 6:37).

Uma objeção que pode se levantar é que o que é atribuído ao “eu” aqui não pode ser realizado por Jesus considerando-se um nível puramente humano. Mas em quase outro contexto, talvez numa discussão sobre a deidade de Cristo, até mesmo os Arminianos admitiriam que como Deus-homem, a Escritura nem sempre distingue meticulosamente o que é atribuído à sua natureza divina e o que é atribuído à sua natureza humana. Nós podemos fazer a distinção quando devemos, mas a Escritura nem sempre faz esta distinção.

Por exemplo, em João 4:10, Jesus é ao mesmo tempo alguém que pede água para beber, e alguém que dá água viva. Mas Jesus em sua natureza divina não pode ficar com sede. Em Atos 3:15, Pedro diz aos judeus: “Vocês mataram o autor da vida”. Mas Jesus em sua natureza divina não poderia ser morto. Certamente, este não é um problema para a inspiração da Escritura, para a deidade de Cristo ou para a doutrina da encarnação. Antes, é um testemunho do fato de que a natureza divina e a natureza humana estão de fato intimamente unidas em Cristo, e, todavia, ainda permanecem distinguíveis, de forma que não há nenhuma mistura ou confusão. Uma não é divinizada, e a outra não é humanizada.

De qualquer forma, é possível responder a objeção a partir do próprio versículo. Observe que o envio dos profetas não é atribuído ao “eu”; antes, somente a reunião dos filhos é assim atribuído. E visto que a reunião está se referindo ao ministério sobre um nível humano e externo, isto não demanda um assunto divino. O fato de que um ministério é resistido num nível humano não diz nada sobre a soberania divina ou a liberdade humana sobre um nível metafísico.

Embora possamos trazer à tona detalhes adicionais para fortalecer o caso, nosso presente esforço foi mais do que suficiente. Já mostramos que o versículo não concede nenhum suporte à heresia do Arminianismo, e urgimos que seus aderentes abandonem seu pensamento humanístico para abraçar a doutrina bíblica.

Nem pode o falso esquema do Calvinismo inconsistente encontrar refúgio aqui, visto que nosso caso se aplica igualmente contra eles e o uso impróprio deste versículo por eles, por exemplo, em seus ensinos sobre a “oferta sincera” do evangelho e sobre a tensão entre os desejos contraditórios na mente de Deus. Nós urgimos que os aderentes desta teologia antibíblica abandonem seu irracionalismo, e finalmente removam todos os traços da heresia Arminiana do seu pensamento.  

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por Vicent Cheung 

quarta-feira, 16 de março de 2016

Eu creio nos 5 SOLAS da Reforma


Somos uma igreja herdeira da Reforma protestante do século XVI. Os 5 pilares da nossa herança são:

               Sola Scriptura: somente a Escritura Sagrada
               Solus Christus: somente em Cristo
               Sola gratia: somente a graça
               Sola fide: somente a fé
               Soli Deo gloria: somente a Deus toda glória


1. Somente a Escritura: é a nossa única fonte e regra de fé e prática.

O calvinismo possui o seu sistema doutrinário centrado na Escritura Sagrada. Desde a Reforma do século XVI foi ensinada a doutrina da sola Scriptura – ou seja, que a Escritura é a única fonte e regra de autoridade. Entretanto, a autoridade da Escritura resultado do fato dela ser a Palavra de Deus. John H. Armstrong corretamente observa que “a autoridade é encontrada no próprio Deus soberano. O Deus que ‘soprou’ as palavras por meio dos escritores humanos está por trás de toda afirmação, toda doutrina, toda promessa e toda ordem contidas na Escritura”.[1] Se rejeitarmos a Escritura Sagrada estamos desprezando a vontade preceptiva de Deus.

A Bíblia tem autoridade porque ela é revelação da vontade de Deus. Por isso, “as inspiradas Escrituras, revelando a vontade transcendente de Deus em forma escrita e objetiva, são a regra de fé e conduta através da qual Jesus exerce sua autoridade divina na vida do crente.”[2] Em outras palavras, esta doutrina significa que a base da nossa doutrina, forma de governo de igreja, culto e todas as esferas da vida, não se fundamentam no tradicionalismo, no subjetivismo, no relativismo, no pragmatismo, ou no pluralismo, mas é extraída somente na Escritura Sagrada. Cremos que suficientemente ela é a verdade absoluta, porque somente a Escritura é a Palavra de Deus (2 Tm 3:16-17; 2 Pe 1:19-20).

2. Somente Cristo: o único mediador da nossa salvação.

O nosso Senhor Jesus se fez um de nós para ser o nosso substituto. Ele é o nosso único representante diante de Deus. O Pai firmou o pacto da redenção que estipulava que o Filho viesse ao mundo para cumprir a sua vontade (Jo 4:34; 6:38-40; 10:10). A Confissão de Fé de Westminster declara que 
aprouve a Deus em seu eterno propósito, escolher e ordenar o Senhor Jesus, seu Filho Unigênito, para ser o Mediador entre Deus e o homem, o Profeta, Sacerdote e Rei, o Cabeça e Salvador de sua Igreja, o Herdeiro de todas as coisas e o Juiz do Mundo; e deu-lhe desde toda a eternidade um povo para ser sua semente e para, no tempo devido, ser por ele remido, chamado, justificado, santificado e glorificado.[3]

Não temos outro mediador pelo qual possamos ser reconciliados com Deus, a não ser Jesus Cristo (At 4:11-12; 1 Tm 2:5). A sua obra lhe confere autoridade para declarar justo todos quantos o Pai lhe deu (Jo 6:37,39,65). Toda a obra expiatória de Jesus é suficiente para a nossa salvação (Rm 8:1). Somente através da perfeita obra de Cristo seremos salvos. A nossa culpa e merecida condenação caiu sobre ele (Hb 2:10). A sua obediência ativa cumpriu todas as exigências da Lei, bem como submetendo passivamente à condenação, fez com que pela sua humilhação, obtivesse plena satisfação da justiça de Deus. O Pai retirou o seu consolo e derramou sobre Cristo a sua ira divina, punindo nele o nosso pecado. As nossas iniquidades estavam sobre o Filho, e a justa ira de Deus veio sobre o nosso pecado na cruz (Hb 2:10). Jesus tornou-se amaldiçoado em nosso lugar sobre o madeiro (2 Co 5:21). O Filho de Deus sofreu os tormentos do inferno intensivamente na cruz, o que sofreríamos extensivamente na eternidade. Cremos que a sua morte expiatória na cruz satisfez a justiça de Deus e, eliminou completamente a nossa condenação futura (Rm 3:24-25), redimindo-nos de todos os nossos pecados (Ef 1:7).


3. Somente a Graça: a única causa da nossa aceitação.

Cremos que a salvação do homem não é resultado de algum mérito pessoal (Rm 3:20, 24, 28; Ef 2:1-10). Todo ser humano possui uma disposição moral totalmente corrompida, de modo que, ele é incapaz de satisfazer perfeitamente a Lei de Deus (Tg 2:8-10). O empenho de merecer a salvação pelas boas obras somente resulta em condenação. Sem a graça a nossa predisposição natural é somente para o pecado (Rm 7:13-25).

A Escritura nos revela que todo ser humano em seu estado natural é inimigo de Deus (Rm 3:23; 5:10). O teólogo puritano Stephen Charnock observou que “todo pecado é uma espécie de amaldiçoar a Deus no coração. O homem tenta destruir e banir Deus do coração, não realmente, mas virtualmente; não na intenção consciente de cada iniquidade, mas na natureza de cada pecado.”[4] A dureza de coração lhe é normal, porque ele está rígido como uma pedra (Ez 36:26-27).

O livre arbítrio perdeu-se com a Queda.[5] Esta capacidade de agir contrário à própria natureza foi perdida com a escravidão do pecado. No início, Adão criado em santidade, foi capaz de escolher contrário à sua inclinação natural de perfeita santidade e, decidiu pecar. O primeiro homem livremente passou a agir de acordo com a escravidão dos desejos mais fortes da sua alma corrompida pela iniquidade. Ele é livre, mas a sua liberdade é usada tendenciosamente para pecar conforme os impulsos de sua inclinação para o pecado. Se ele for deixado para si mesmo, ele sempre agirá de acordo com a sua disposição interna, ou seja, naturalmente escolherá pecar (Rm 1: 24-32; 3:9-18; 7:7-25; Gl 5:16-21; Ef 2:1-3).

A nossa salvação é resultado da ação da livre e soberana graça do nosso Deus. AConfissão de Fé de Westminster declara que 
todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso, dispostos pela sua graça.[6]

Somente a ação soberana e eficaz do Espírito Santo é capaz de regenerar corações implantando uma nova disposição santa. O resultado é a libertação da escravidão do pecado. Esta obra Deus a realiza pela graça somente.


4. Somente a Fé: é o único instrumento de posse da nossa salvação.

A fé é o meio normal pelo qual o Espírito Santo aplica o processo da salvação nos eleitos. Entretanto, devemos lembrar que a fé é dom de Deus e não uma virtude humana (Rm 4:5; 10:17; Ef 2:8-9; Fp 1:9). O Breve Catecismo de Westminster define este dom: “fé em Jesus Cristo é uma graça salvadora, pela qual o recebemos e confiamos só nele para a salvação, como ele nos é oferecido no Evangelho.” O Catecismo de Heidelberg esclarece que 
a verdadeira fé é a convicção com que aceito como verdade tudo aquilo que Deus nos revelou em sua Palavra. É também a firme certeza de que Deus garantiu – não só aos outros como também a mim – perdão de pecados, justiça eterna, e salvação por pura graça e somente pelos méritos de Cristo. O Espírito Santo realiza essa fé em meu coração por meio do evangelho.[7]

Por isso, a teologia reformada entende que a verdadeira fé é o resultado de um iluminado conhecimento, da plena concordância verdade e da firme confiança na Palavra de Deus.


A justificação vem pela fé somente na obra de Cristo. Nenhum homem pode ser salvo, a não ser que creia na expiação realizada por Cristo, confiando exclusivamente nele (Rm 1:17; Tt 3:4-7; 1 Jo 5:1). A justiça de Cristo que é imputada sobre nós concede, garante e mantém-nos aceitos na comunhão eterna de Deus.

A verdadeira fé conduz as boas obras que evidenciam a salvação e glorificam a Deus. A salvação é pela fé somente, mas a fé salvadora nunca está sozinha. A fé salvadora produz amor prático ao próximo, santidade pessoal em obediência à Palavra de Deus. A Escritura Sagrada declara que “pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2:10).

5. Somente a Deus toda Glória: o único objetivo da nossa salvação.

Cremos no único Deus, que é Senhor da história e do universo, “que faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade” (Ef 1:11). É nossa convicção que a finalidade principal da vida não é necessariamente o bem-estar, a saúde física, a prosperidade, a felicidade, ou mesmo a salvação do homem, mas, a glória de Deus e na manifestação de todos os seus atributos. Johannes G. Vos comentando o Catecismo Maior de Westminsterobserva que “quem pensa em gozar a Deus sem o glorificar corre o risco de supor que Deus existe para o homem, e não o homem para Deus. Enfatizar o gozar a Deus mais do que o glorificar a Deus resultará num tipo de religião falsamente mística ou emocional.”[8] Deus não existe para satisfazer as necessidades do homem, embora ele o faça por amor de si mesmo (Ez 20:14). O homem foi criado para o louvor da glória de Deus (Rm 11:36; Ef 1:6-14).[9]

É verdade que a glória de Deus transcende ao nosso entendimento, mas ela pode ser percebida pela sua manifestação na criação e pela revelada Palavra da Deus. João Calvino no início de suas Institutas escreve que 
a soma total da nossa sabedoria, a que merece o nome de sabedoria verdadeira e certa, abrange estas duas partes: o conhecimento que se pode ter de Deus, e o de nós mesmos. Quanto ao primeiro, deve-se mostrar não somente que há um só Deus, a quem é necessário que todos prestem honra e adorem, mas também que Ele é a fonte de toda verdade, sabedoria, bondade, justiça, juízo, misericórdia, poder e santidade, para que dele aprendamos a ouvir e a esperar todas as coisas. Deve-se, pois, reconhecer, com louvor e ação de graças, que tudo dele procede.[10]

Mas, por que a nossa felicidade depende da glória de Deus? Simplesmente porque a nossa dignidade e satisfação dependem de vivermos sem a insensatez, vícios e destruição causados pelo pecado. Somente quando obedecemos à vontade de Deus, segundo as Escrituras, podemos andar aceitáveis em sua presença e desfrutar dos benefícios das suas promessas. Aurélio Agostinho em sua obra Confissões declarou que “Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.”[11] Assim, quanto maior for a nossa satisfação em Deus, ele será mais glorificado em nós!


O soberano Senhor não compartilha a sua glória com ninguém! O nosso orgulho é uma ofensa gravíssima ao nosso Deus. Não é em vão que ele denúncia a sua rejeição aos soberbos (Tg 4:6-10). Somente ele é o Altíssimo, enquanto o pecador consegue em suas fúteis pretensões ser apenas uma ilusória altivez. Não podemos esquecer de que somos chamados para ser servos do seu reino, e de que toda a abrangência de nossa vida está ao seu serviço (Rm 11:36).

O profeta Jeremias disse que assim diz o SENHOR: não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem se glorie o forte na sua força; não se glorie o rico nas suas riquezas; mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em entender, e em me conhecer, que eu sou o SENHOR, que faço benevolência, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o SENHOR. (Jr 9:23-24). Assim, em compromisso, confessamos que “porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém.” (Rm 11:36).

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NOTAS:
[1] John H. Armstrong, “A autoridade da Escritura” in: Bruce Bickel, ed., Sola Scriptura numa época sem fundamentos, o resgate do alicerce bíblico (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2000), p. 90.
[2] Carl F.H. Henry, “A autoridade da Escritura” in: Philip W. Comfort, ed., A origem da Bíblia (Rio de Janeiro, CPAD, 1998), p. 28.
[3] Confissão de Fé de Westminster VIII.1.
[4] Stephen Charnock, The Existence and the Attributes of God (Grand Rapids, Baker Books, 2000), vol. 1, p. 93.
[5] A tradição agostiniana/calvinista interpreta a doutrina do livre arbítrio da seguinte forme: “o livre arbítrio é dividido em quatro modos, por causa dos quatro estados do homem. No primeiro estado a vontade do homem era livre para o bem e para o mal. No estado caído o homem é livre somente para o mal. O homem nascido de novo, ou o homem em estado de graça, é livre do mal e para o bem, pela graça de Deus somente, mas imperfeitamente. No estado de glória ele será perfeitamente livre do mal para o bem. No estado de inocência o homem era capaz de não pecar [posse non peccare]. No estado de miséria ele é incapaz de não pecar. No estado de graça, o pecado não pode governar o homem. No estado de glória ele se tornará incapaz de pecar.” Johannes Wollebius, Compendium Theologicae Christianae in: John W. Beardslee III, ed., Reformed Dogmatics (Grand Rapids, Baker Books, 1977), p. 65. Este manual de teologia de Wollebius [1586-1629] influenciou os teólogos que elaboraram os Padrões de Westminster.
[6] Confissão de Fé de Westminster, X.1.
[7] Catecismo de Heidelberg, Domingo 7, perg./resp. 21.
[8] Johannes G. Vos, Catecismo Maior de Westminster Comentado (Editora Os Puritanos), pág. 32.
[9] Breve Catecismo de Westminster, perg./resp. 1.
[10] João Calvino, Institutas, (edição estudo de 1541), vol. I, p. 55.
[11] Santo Agostinho, Confissões (Editora Paulus), vol. 10, p. 19.

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Fonte: Estudantes de Teologia

terça-feira, 15 de março de 2016

A Soberania de Deus e a Liberdade humana na perspectiva calvinista


Introdução 

Ao analisarmos a história, tanto do pensamento religioso como do pensamento filosófico, perceberemos que existe certo modelo cíclico na abordagem de grandes temas da humanidade e não uma linearidade absoluta, que preconizaria a existência de temas totalmente novos e de número praticamente incontável. Mas, certamente, não é isso que ocorre. As mesmas questões são objeto de investigação nas mais variadas culturas e gerações. Essa recorrência acaba estabelecendo um número extremamente limitado do que podemos chamar de “os grandes problemas da humanidade”.
Segundo Wright, fazem parte dessa lista:

A relação da unidade do mundo com a diversidade de nossa experiência individual, como podemos estar certos do conhecimento que temos, se há Deus ou não, a natureza da “substância” de que o mundo é feito e como devemos navegar nas questões éticas (WRIGHT, 1998, p.19).

Kayper trata esse assunto de forma ainda mais sintética e apresenta a seguinte lista: “Nossa relação com Deus, nossa relação com o homem e nossa relação com o mundo” (KUYPER, 2002. p, 28).
Todas as outras discussões são derivadas, direta ou indiretamente, dessas grandes abordagens. Um dos mais persistentes desses problemas e que tem ocupado a mente dos mais importantes pensadores, é o que trata sobre a liberdade das ações humanas em contrapartida com a causalidade.
É nossa vontade realmente livre de causas e influências, ou são todas as nossas ações “predeterminadas” de algum modo?
Na filosofia, o debate reaparece no binômio paradoxal entre autonomia versus determinismo. A máxima da antropologia socrática: “conhece-te a ti mesmo”, apresenta uma consciência humana autônoma, de forma que o caminho da verdade suprema deve ser encontrado “dentro” do próprio homem. Coube a Nietzsche, entretanto, a libertação absoluta de toda e qualquer forma de transcendência. O criador do “super-homem” chega a “matar” Deus em busca do diploma da liberdade absoluta, para outorgá-lo ao homem:

Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar em que vos fala de esperanças supraterrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não. Não dão o menor valor à vida, moribundos que estão, por sua vez envenenados, seres de que a terra se encontra fatigada; vão se por uma vez! (NIETZSCHE, 1994, p.30)

E ainda:

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda história até hoje! (NIETZSCHE. Fredrich. A Gaia Ciência, §125).

A ciência[2], por sua vez, toma emprestado, da filosofia, o termo determinismo e o transforma na principal base do conhecimento científico da natureza, para afirmar a existência de relações fixas e necessárias entre os seres e os fenômenos naturais, isto é, o que acontece não poderia deixar de acontecer porque são conseqüências de causas anteriores.
Nosso maior enfoque, porém, neste ensaio, será teológico. O problema é tratado, primordialmente, entre as culturas religiosas, como sendo a relação entre a vontade humana e a soberania divina, ou ainda, mais especificamente, como a relação entre livre-arbítrio e predestinação ou predeterminação.
Não é raro encontrarmos posturas extremadas, ora beneficiando a total soberania divina e a negação total da liberdade humana, o que faria de Deus o autor do pecado e do mal ora evidenciando a total liberdade humana, o que não só nega a soberania de Deus como o reduz a um mero “registrador” da vontade do homem.
Um dos principais exemplos da negação total da vontade humana pode ser encontrado no Hinduísmo. Considerada a mais velha religião ainda existente no mundo, tem no conceito de estratificação social das castas[3] o exemplo máximo da aceitação do condicionamento, por fatores externos, da vida. Um indivíduo que nasce em uma determinada casta, julgada inferior, jamais pode ascender para uma casta superior, e, isso, determinará todo o seu futuro.
Os mulçumanos[4] também figuram entre os principais exemplos de negação da vontade humana. Para eles, não há espaço para a atuação “livre” do homem, uma vez que professam um determinismo absoluto, que não deixa lugar no mundo para as verdadeiras relações de causa e efeito, já que todas as ações, boas e más, foram “criadas” pelo insondável decreto de Alá.
Não podemos deixar de citar aqui também, entre aqueles que negam completamente qualquer tipo de liberdade humana, o hipercalvinismo[5].
Em contrapartida à negação total da liberdade do homem, temos o outro extremo: as tendências religiosas que intensificam o livre-arbítrio de tal forma que chegam a ofuscar a soberania de Deus, como o pelagianismo romano e, principalmente, o arminianismo da maioria das igrejas evangélicas pós-reforma protestante. Nesse sentido, Wright denuncia a “manipulação genética” que essas igrejas estão fazendo em Deus, retirando-lhe atributos que são próprios e exclusivos de sua natureza divina, simplesmente para “acomodar a suposição da autonomia humana” (WRIGHT, 1998, p.14).
Como pudemos perceber acima, a busca cíclica do homem por novas respostas a antigos problemas – ora beneficiando a liberdade do homem ora excluindo-a por completo, em nome da soberania divina, tende a continuar. O homem só se fixará em um sistema de resposta convincente quando entender, como afirma A.W.Pink, em seu famoso livro “Deus é Soberano”, que as duas sentenças são verdadeiras, em certo sentido: O homem é livre e responsável pelos seus atos e, ao mesmo tempo, Deus é Soberano.
O Calvinismo é esse poderoso sistema, não somente teológico, mas de vida. Hermeticamente fechado, atende aos interesses mais profundos da humanidade, tanto da alma quanto da racionalidade. O Calvinismo reconhece Deus como Deus, soberano, acima de tudo e de todos; ao mesmo tempo em que entende o homem, na sua situação pré-queda, como livre e pós-queda, como uma criatura decaída. O Calvinismo entende o homem e o próprio Deus, pelo prisma das Sagradas Escrituras; ao mesmo tempo que se distancia do misticismo, abrindo, com isso, uma importante janela para o desenvolvimento e a racionalidade, aproxima-se, de forma profunda e coerente, com a antropologia e teologia da revelação escrita.
Kuyper, comentando sobre o sistema de vida calvinista, faz a seguinte afirmação:
Não há dúvida, então, de que o Cristianismo está exposto a grandes e sérios perigos. Dois sistemas de vida estão em combate mortal. O Modernismo está comprometido em construir um mundo próprio a partir de elementos do homem natural, e a construir o próprio homem a partir de elementos da natureza; enquanto que, por outro lado, todos aqueles que reverentemente humilham-se diante de Cristo e o adoram como o Filho do Deus vivo, e o próprio Deus, estão resolvidos a salvar a “herança cristã”. Esta é a luta na Europa, esta é a luta na América, e esta também é a luta por princípios em que meu próprio país está engajado, e na qual eu mesmo tenho gasto todas as minhas energias por quase quarenta anos.Nessa luta apologética não temos avançado um único passo. Os apologistas invariavelmente começam abandonando a defesa assaltada, a fim de entrincheirarem-se covardemente um revelim atrás deles. Desde o início, portanto, tenho sempre dito a mim mesmo, -“Se o combate deve ser travado com honra e com esperança de vitória, então, princípio deve ser ordenado contra princípio. A seguir, deve ser sentido que no Modernismo, a imensa energia de um abrangente sistema de vida nos ataca; depois também, deve ser entendido que temos de assumir nossa posição em um sistema de vida de poder, igualmente abrangente e extenso. E este poderoso sistema de vida não deve ser inventado nem formulado por nós mesmos, mas deve ser tomado e aplicado como se apresenta na História. Quando assim fiz, encontrei e confessei, e ainda sustento, que esta manifestação do princípio cristão nos é dada no Calvinismo (KUYPER, 2002, p.19).

Certamente uma análise cuidadosa dos princípios calvinistas acerca da Soberania de Deus e da liberdade humana trará grande luz, capaz de iluminar os recantos mais obscuros desse antigo problema da humanidade.

1.Soberania que cria liberdade

O famoso filme do diretor Stevan Spilberg, “inteligência artificial”, aborda a ideia de um robô criado para ter uma relação de perfeição com seu “dono”. Programado para ter um amor incondicional, o menino-robô surge como um ser “absolutamente perfeito”; criado para fazer tão somente aquilo que agrada aos seus compradores/familiares.
Baseados na ideia do filme, levantamos a seguinte questão: acaso Deus não poderia ter criado o homem com tal nível de programação a ponto de ter como “único” desejo o serviço a seu criador, da maneira como este estabelecesse, previamente, em sua própria programação? É claro que sim.
O fato é que aprouve a Deus, em Sua soberania, diferentemente de Spilberg, criar não somente o homem, mas criar também sua própria liberdade e autonomia. Aprouve a Deus criar o homem livre.
Essa liberdade, porém, outorgada por Deus ao homem, precisa, à luz do calvinismo, ser entendida dentro do contexto histórico-temporal de “antes-queda” e “pós-queda”. Diferentemente da visão pelagiana/arminiana, para o calvinismo a inserção do pecado, via “escolha-livre-do-homem”, que resolveu, pelo seu próprio arbítrio e vontade, transgredir as expressas ordens do seu criador (direito concedido por Ele mesmo), trouxe para si mesmo uma drástica mudança em sua natureza. Mesmo tendo sido solenemente alertado sobre essa conseqüência, pelo seu criador, “decidiu”, sozinho, ser agente ativo e consciente dessa mudança.

1.1 Liberdade que decide não ter liberdade

1.1.1. Situação Pré-queda do homem

Agostinho costuma dizer que a antropologia bíblica poderia ser dividida em três fazes. Na primeira delas, antes da queda, “o homem podia não pecar”. É seguindo esses mesmos passos que o calvinismo entende a situação de liberdade do homem, antes da queda.
Passaremos a analisar os principais documentos calvinistas que tratam da criação da liberdade do homem.
A confissão de Fé de Westminster, formulada no século XVII por cerca de 121 teólogos calvinistas, faz a seguinte afirmação, no capítulo que trata sobre a criação:

Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações, e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável (WESTMINSTER, 1999, IV.II).


Um importante teólogo calvinista comentando sobre o que possibilitou que Adão e Eva pecassem apresenta o seguinte motivo:

Deus os deixou à liberdade da sua própria vontade, em vez de usar da sua onipotência para impedi-los de pecar. Por ser onipotente, Deus com certeza poderia ter impedido a raça humana de cair em pecado. Mas em Sua sabedoria não escolheu impedir a queda. Como Deus conteve a Sua onipotência e deixou Adão e Eva à própria vontade deles, foi-lhes plenamente possível optarem por cometer o pecado (GEERBARDUS, 2007, p.87).


Ainda sobre a criação da liberdade do homem:

O homem é a única das criaturas dentre as que Deus criou que é consciente de si mesma. Deus fez o homem à sua imagem mental e moral. O Dr.Albertus Pieters diz: “isso compreende o poder autoconsciente de raciocinar, a capacidade da autodeterminação e o senso moral. Em outras palavras, ser uma criatura que pode dizer “Eu sou”, eu devo, eu irei” – isso é o que significa ser feito à imagem de Deus (VAN HORN, 2000, p.25).


Outro importante teólogo calvinista, o holandês Berkhof, ainda comentando sobre a criação da liberdade, afirma:

Sua condição era preliminar e temporária, podendo levar a maior perfeição e glória ou acabar numa queda. Foi por natureza dotado daquela justiça original que é a glória máxima da imagem de Deus e, consequentemente, vivia num estado de santidade positiva. A perda daquela justiça significaria a perda de uma coisa que pertencia à própria natureza do homem em seu estado ideal. O homem podia perdê-la e ainda continuar sendo homem, mas podia não perdê-la e continuar sendo o homem no sentido ideal da palavra (BERKHOF, 1990, p.209).


Cremos que já ficou claro o suficiente que o calvinismo entende que o homem, em seu estado natural, possuía o que costumeiramente é chamado de livre-arbítrio. No entanto, não podemos encerrar essa cessão sem antes verificarmos o capítulo da Confissão de Westminster que trata especificamente sobre a criação da liberdade ou do livre-arbítrio do homem:

Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza. Tiago 1:14; Deut. 30:19; João 5:40; Mat. 17:12; At.7:51; Tiago 4:7. O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder. Ec. 7:29; Col. 3: 10; Gen. 1:26 e 2:16-17 e 3:6 (WESTMINSTER, 1999, IX. I, II).


1.1.2 Situação Pós-queda do homem

Precisamente neste ponto começam as divergências sobre a antropologia Bíblica. Que o homem (em sua situação pré-queda) era livre em seu arbítrio, agostinianos e pelagianos, calvinistas e arminianos, andam juntos. A bifurcação teológica, entretanto, perpassa pelas conseqüências dessa “escolha consciente” em não obedecer e não levar em conta as ameaças solenes de Deus.
Para Pelágio essas conseqüências foram graves mas, apesar disso, ela não afetou a “natureza do homem”. Para ele, “a liberdade é o bem supremo, a honra e a glória do homem, o bonum naturae, que não pode ser perdido [...]. Essa habilidade é dada ao homem por Deus na criação, e é um aspecto essencial da natureza constitutiva do homem” (SPROUL, 2001, p.32). Ele acreditava que a natureza do homem continuou sendo livre e boa, da mesma forma como foi integralmente criada.
Armínius, não concordava com Pelágio, relativamente às conseqüências da queda para a natureza do homem e entendia, em certo sentido, ser necessário o auxílio da graça divina para o homem voltar a obedecer. No entanto, em sua opinião, essa graça não é um fim em si mesma e que a regeneração é gradativa e não instantânea, depende, inclusive, da santificação enquanto processo. “Ele declara que esta obra da regeneração e iluminação não é completada num momento; mas [...] é elevada e promovida de tempos em tempos, pelo crescimento diário” (SPROUL, 2001, p141).
Em última instância e para finalizar aqui essa exposição da antítese do calvinismo, Armínius acreditava que, de alguma forma, havia restado, mesmo depois da queda, algum tipo de liberdade no homem; uma porção de livre-arbítrio o que, indiscutivelmente, o aproxima de Pelágio, conforme demonstra Sproul, citando Armínius:

Todas as pessoas não-regeneradas tem liberdade de vontade e uma capacidade para resistir ao Espírito Santo, para rejeitar a oferta da graça de Deus, para rejeitar a oferta da graça de Deus, para desprezar o evangelho e para não abrir àquele que bate à porta do coração; e essas coisas eles realmente podem fazer sem qualquer diferença entre o eleito e o répobro (SPROUL, 2001, p.143).


Diferentemente de Pelágio e Armínius a visão calvinista entende que, com a queda, o homem torna-se “totalmente depravado” em todas as suas instâncias e assim como Agostinho, nessa nova realidade o homem “não pode não pecar”.
Sobre os efeitos da queda, afirma a Confissão de Fé de Westminster:


Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente corrompidos em todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma. Gen. 3:6-8; Rom. 3:23; Gen. 2:17; Ef. 2:1-3; Rom. 5:12; Gen. 6:5; Jer. 17:9; Tito 1:15; Rom.3:10-18. IV. Desta corrupção original pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal, é que procedem todas as transgressões atuais. Rom. 5:6, 7:18 e 5:7; Col. 1:21; Gen. 6:5 e 8:21; Rom. 3:10-12; Tiago 1:14-15; Ef. 2:2-3; Mat. 15-19 (WESTMINSTER, 1999, VI.II).


O mesmo documento ainda expõe de forma clara que o homem, que antes era detentor do “livre-arbítrio”, com a queda perde-o inteira e totalmente, nada restando.

O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu pr6prio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso. Rom. 5:6 e 8:7-8; João 15:5; Rom. 3:9-10, 12, 23; Ef.2:1, 5; Col. 2:13; João 6:44, 65; I Cor. 2:14; Tito 3:3-5. (WESTMINSTER, 1999, IX.III).

E ainda:

Todo o pecado, tanto o original como o atual, sendo transgressão da justa lei de Deus e a ela contrária, torna, pela sua própria natureza, culpado o pecador e por essa culpa está ele sujeito à ira de Deus e à maldição da lei e, portanto, exposto à morte, com todas as misérias espirituais, temporais e eternas. I João 3:4; Rom. 2: 15; Rom. 3:9, 19; Ef. 2:3; Gal. 3:10; Rom. 6:23; Ef. 6:18; Lam, 3:39; Mat. 25:41; II Tess. 1:9 (WESTMINSTER, 1999, VI.VI).

Os Cânones de Dort, outro documento calvinista, elaborado em 1618 em contra-argumentação ao documento apresentado pelos seguidores de Armínius em 1609, na Holanda, que ficou conhecido como “Remonstrance”, faz a seguinte afirmação acerca da situação pós-queda do homem:

Sua vontade e seu coração eram retos, todos os seus afetos puros [...]. Mas, desviando-se de Deus [...] Pela sua própria livre vontade, ele se privou destes dons excelentes. Em lugar disso trouxe sobre si cegueira, trevas terríveis, leviano e perverso juízo em seu entendimento; malícia, rebeldia e dureza em sua vontade e seu coração; também impureza em todos os seus afetos (DORT, 1996, III.I).


Lutero também subscrevia integralmente o pensamento de Calvino quanto à situação pós-queda. Em sua obra “nascido escravo”, um famoso debate com Erasmo de Roterdan, faz a seguinte afirmação:

Erasmo [...] você assevera que o “livre-arbítrio” é a capacidade que a vontade humana tem, por si mesma, de decidir [...]. Os pelagianos também fizeram isso. Mas você os ultrapassa! [...]. Prefiro até mesmo o ensinamento de alguns dos antigos filósofos aos seus. Eles diziam que um homem entregue a si mesmo só faria o errado. O homem só poderia escolher o bom com a ajuda da graça divina. Eles diziam que os homens são livres para decair, mas que precisam de ajuda para elevarem-se! Porém, é motivo de riso chamar a isso de “livre-arbítrio”. Com base em tais conceitos, eu poderia afirmar que uma pedra tem “livre-arbítrio”, pois só pode cair, a menos que seja erguida por alguém! O ensino daqueles filósofos, põem, ainda é melhor do que o seu. A sua pedra, Erasmo, pode escolher se sobe ou desce! (LUTERO, 1988, p.41).

O Catecismo Maior de Westminster dá a seguinte resposta à pergunta de n° 23: Em que estado a queda deixou a humanidade?: “A humanidade por causa da queda foi deixada em estado de pecado e de miséria” (CATECISMO MAIOR, 2007. 23).
Comentando sobre os resultados imediatos da queda e a situação em que ficou o homem, Berkhof faz a seguinte afirmação:

O concomitante imediato do primeiro pecado e, portanto, dificilmente um resultado dele no sentido estrito da palavra, foi a depravação total da natureza humana. C contágio do seu pecado espalhou-se imediatamente pelo homem todo, não ficando sem ser tocada nenhuma parte da natureza, mas contaminando todos os poderes e faculdades do corpo e da alma [...]. Esta mudança da condição real do homem refletiu-se também em sua consciência [...]. Não somente a morte espiritual, mas também a morte física resultou do primeiro pecado do homem (BERKHOF, 1990.p.227).

1.1.2.1 A decisão que afeta a posteridade
Os principais documentos calvinistas reconhecem que, em Adão, toda a sua descendência pereceu e que as mesmas conseqüências advindas sobre Adão passaram também, numa espécie de “transmissão hereditária”, para sua descendência: “Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua posteridade, que deles procede por geração ordinária”. At. 17:26; Gen. 2:17; Rom. 5:17, 15-19; I Cor. 15:21-22,45, 49; Sal.51:5; Gen.5:3; João3:6 (WESTMISNTER, 1999, VI.III).
Os Cânones de Dort afirmam o seguinte, sobre esse assunto:

Depois da queda, o homem corrompido gerou filhos corrompidos. Então a corrupção, de acordo com o justo julgamento de Deus, passou de Adão até todos os seus descendentes, com exceção de Cristo somente. Não passou por imitação, como os antigos pelagianos afirmavam, mas por procriação da natureza corrompida. Portanto, todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação que o salve, inclinados para o mal, mortos em pecados e escravos do pecado. Sem a graça do Espírito Santo regenerador nem desejam nem tampouco podem retornar a Deus, corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos estar dispostos para esta correção. (DORT, 1996, III.II, III).
O breve Catecismo de Westminster responde da seguinte forma à pergunta 16: Todo o gênero caiu pela transgressão de Adão? “Visto que o pacto foi feito com Adão, não só para ele, mas também para a sua posteridade, todo gênero humano, que procede por geração ordinária, pecou nele e caiu com ele na sua primeira transgressão” (BREVE CATECISMO, 2000. 16).

2. A soberania que resgata a liberdade
Como vimos, os principais representantes da doutrina calvinista são unânimes em afirmar a situação do homem pós-queda como uma situação de morte espiritual e total depravação de todo o seu ser.
A expulsão do homem do paraíso, registrada em Gêneses, como uma das conseqüências de seu pecado, tem sido entendida “simplesmente” como um ato punitivo de Deus e de fato foi; mas não só. Esse ato pode ser entendido também como uma providência benevolente de Deus para que o homem, agora decaído, não permanecesse eternamente nessa situação. Nesse sentido, o Breve Catecismo de Westminster responde da seguinte forma à indagação n° 20:

Deixou Deus todo gênero humano perecer no estado de pecado e miséria?: “Tendo Deus, unicamente pela sua boa vontade, desde toda a eternidade escolhido alguns para a vida eterna, entrou com eles em um pacto de graça, para livrá-los do estado de pecado e miséria e os levar a um estado de salvação por meio de um redentor”
(BREVE CATECISMO, 2000. 20).

Geerbardus, teólogo calvinista, comentando sobre essa questão faz a seguinte afirmação:
Deus salva os seus eleitos tão somente por causa de seu amor e misericórdia. Isso é, nada obriga Deus salvar nenhuma parte da raça humana, mas Ele, na verdade, por causa do Seu amor e misericórdia, desejou e planejou a salvação de alguns deles [...]. E não há parcialidade nem injustiça nisso, pois Deus não deve a salvação a ninguém. Todos pecaram contra ele, perderam todo o direito e Ele nada deve a ninguém senão condenação (GEERBARDUS, 2007. p.110).
Na visão calvinista, para essa situação pós-queda em que o homem se meteu, só há uma esperança de reversão desse tenebroso quadro: uma intervenção externa e soberana que só Deus pode realizar, dando-lhe vida novamente, tirando-lhe do estado de miséria e morte espiritual, devolvendo a vida e com ela a liberdade:
Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa. Ref. Ef. 1:4, 9, 11; Rom. 8:30; II Tim. 1:9; I Tess, 5:9; Rom. 9:11-16; Ef. 1: 19: e 2:8-9 (WESTMINSTER, 1999, III, V).

E ainda:

Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça. Ref. João 15:16; At. 13:48; Rom. 8:28-30 e 11:7; Ef. 1:5,10; I Tess. 5:9; 11 Tess. 2:13-14; IICor.3:3,6; Tiago 1:18; I Cor. 2:12; Rom. 5:2; II Tim. 1:9-10; At. 26:18; I Cor. 2:10, 12: Ef. 1:17-18; II Cor. 4:6; Ezeq. 36:26, e 11:19; Deut. 30:6; João 3:5; Gal. 6:15; Tito 3:5; I Ped. 1:23; João 6:44-45; Sal. 90;3; João 9:3; João6:37; Mat. 11:28; Apoc. 22:17 (WESTMINSTER, 1999, X,I).

Para maiores esclarecimentos sobre esse tópico recomendamos uma análise mais detalhada sobre o segundo e terceiro pontos da sistematização doutrinária do calvinismo: Eleição Incondicional e Expiação Limitada, respectivamente, o que não faremos aqui por motivo de delimitação dessa abordagem.

2.1 A mudança no conceito de liberdade em benefício do homem
Diferentemente da liberdade que dispunha o homem, antes da queda – não tendia nem para o bem nem para o mal -, de forma que essa liberdade não sofria nenhuma pressão de natureza, a liberdade que Deus devolve, tão somente aos eleitos, é uma liberdade segundo sua nova natureza.
Agostinho resumia essa terceira fase de sua antropologia dizendo que após a operação da graça de Deus que Re-vivifica o homem, tirando-o do estado de perdição para o estado de salvação, “o homem não pode pecar”.


Interessante notarmos que no capítulo que trata sobre o livre-arbítrio, a Confissão de Fé de Westminster descreve um novo tipo de liberdade: uma liberdade que conduz o homem, devido à nova semente de vida plantada no seu coração, pelo próprio Deus, a decidir e a querer apenas o bem e às coisas que o conduz cada vez mais próximo de Deus. Contudo, isso não deve ser traduzido como uma “nova escravidão da vontade” e sim como uma Re-criação de uma vontade que agora se coaduna com a sua nova natureza. Essa vontade, no entanto, ainda está condicionada pelas contingências desse mundo, de forma que pode em algum momento variar para o que é mau, mas não de forma “natural” e essencial. Essa espécie de “vontade livre para o bem”, que denota também uma espécie de “homem ideal”, ocorrerá definitivamente tão somente nos céus – habitação final e eterna dos eleitos – mas, ocorrerá. Vejamos textualmente o documento calvinista:

Quando Deus converte um pecador e o transfere para o estado de graça, ele o liberta da sua natural escravidão ao pecado e, somente pela sua graça, o habilita a querer e fazer com toda a liberdade o que é espiritualmente bom, mas isso de tal modo que, por causa da corrupção, ainda nele existente, o pecador não faz o bem perfeitamente, nem deseja somente o que é bom, mas também o que é mau. Col.1: 13; João 8:34, 36; Fil. 2:13; Rom. 6:18, 22; Gal.5:17; Rom. 7:15, 21-23; I João 1:8, 10. É no estado de glória que a vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só. f. 4:13; Judas, 24; I João 3:2 (WESTMINSTER, 1999, IX, IV, V).

No capítulo que trata especificamente da liberdade cristã (dos eleitos, agora regenerados) o mesmo documento anteriormente citado faz a seguinte afirmação:

A liberdade que Cristo, sob o Evangelho, comprou para os crentes consiste em serem eles libertos do delito do pecado, da ira condenatória de Deus, da maldição da lei moral e em serem livres do poder deste mundo. do cativeiro de Satanás, do domínio do pecado, do mal das aflições, do aguilhão da morte, da vitória da sepultura e da condenação eterna: como também em terem livre acesso a Deus, em lhe prestarem obediência, não movidos de um medo servil, mas de amor filial e espírito voluntário. Todos estes privilégios eram comuns também aos crentes debaixo da lei, mas sob o Evangelho, a liberdade dos cristãos está mais ampliada, achando-se eles isentos do jugo da lei cerimonial a que estava sujeita a Igreja Judaica, e tendo maior confiança de acesso ao trono da graça e mais abundantes comunicações do Espírito de Deus, do que os crentes debaixo da lei ordinariamente alcançavam. Tito 2:14; I Tess. 1: 10; Gal. 3:13; Rom. 8: 1; Gal. 1:4; At. 26:18; Rom. 6:14; I João 1:7; Sal. 119:71; Rom. 8:28; I Cor, 15:54-57; Rom. 5l: 1-2; Ef. 2:18 e 3:12; Heb. 10: 19; Rom. 8:14. 15; Gal. 6:6; I João 6:18; Gal. 3:9, 14, e 5: 1; At. 15: 10; Heb. 4:14, 16, e 10: 19-22; João 7:38-39; Rom. 5:5 (WESTMINSTER, 1999, XX.I).

A garantia de que essa liberdade jamais terá fim (diferentemente do estado transitório da liberdade inicial) está sintetizada no último ponto da antítese calvinista à Remostrance, sob o título Perseverança dos Santos.


Conclusão

O Calvinismo não só é uma resposta convincente ao grande problema da humanidade, sintetizada no binômio Soberania de Deus versus Liberdade humana, ou ainda, como trata a filosofia: Liberdade versus necessidade.
Ele é um poderoso sistema de vida, hermeticamente fechado, capaz de responder às questões mais difíceis em todos os níveis e áreas do conhecimento humano. O calvinismo é um dos poucos sistemas que evidencia na prática seus pressupostos teóricos: a humanidade caminha a passos largos em direção à maldade, chegando cada vez mais próximo da perfeição, evidenciando, de forma inconteste a sua “depravação total”.
Os eleitos, em contrapartida, (calvinistas e não calvinistas), demonstram com suas vidas uma atitude diferenciada; fruto da inclusão, por amor, de sua “nova vontade” – livre para o bem – no seu coração, pela graça de Deus. Os eleitos calvinistas, por sua vez, desenvolvem uma ética tão peculiar que pode ser vista e não negada, mesmo por aqueles que, intrinsecamente, estão distanciados desse sistema, como bem observa Weber:
O Deus de Calvino exigia de seus crentes não boas ações isoladas, mas uma vida de boas ações combinadas em um sistema unificado. Mas no curso de seu desenvolvimento, o calvinismo acrescentou algo de positivo a isso tudo, ou seja, a idéia de comprovar a fé do indivíduo pelas atitudes seculares. [...] consideramos apenas o calvinismo e adotamos a doutrina da predestinação como arcabouço dogmático da moralidade puritana, no sentido de racionalização metódica da conduta ética.(WEBER, 2004. p.91,94,96).


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Presb. Fábio Correia
Secretário de Educação Religiosa do Presbitério Recife - PRRE. Mestre em Filosofia pela UFPE, Licenciado em Educação Religiosa pelo SPN, Licenciado m Filosofia pela Unicap, Professor de Filosofia da Faculdade Decisão-PE. fabiocorreia@hotmail.com

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[2] O determinismo constitui um princípio da ciência experimental que se fundamenta pela possibilidade da busca das relações constantes entre os fenômenos. Essa teoria afirma que o comportamento humano é condicionado por três fatores: genética, meio e momento. Os deterministas pensam que todos os acontecimentos do universo estão de acordo com as leis naturais, ou seja, que todo fenômeno é condicionado pelo que precede e acompanha. Não creem no acaso, nem no sobrenatural, propondo sempre uma investigação na causa dos fenômenos, sem aceitar que aconteceu porque tinha de acontecer. Uma bola de bilhar arremessada com determinada força e direção só poderá percorrer um único caminho que poderá ser traçado com perfeição se todas as variáveis puderem ser levadas em conta, portanto, seu comportamento é determinado pela acção que a causou. Assim, segundo o determinismo, você não pode optar por um sorvete de chocolate ou baunilha, o que ocorre é a ilusão de escolha. Seja qual for a opção que tomar, ela já estaria pré-determinada por toda a sua trajetória de vida e de toda a humanidade antes dela. O que acontece é que as variáveis ocorridas no ato tendem ao infinito, causando, assim, a ilusão de livre-arbítrio ou escolha, conforme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Determinismo.
[3]A sociedade de castas é marcada pela rigidez na hierarquização. Baseia-se na hereditariedade, na profissão, na etnia, na religião, determinando uma situação de respeitabilidade. A definição desses critérios ocorre a partir de um conjunto de valores, hábitos e costumes definidos pela tradição. O sistema de castas assenta-se numa relação de privilégios que alguns indivíduos possuem em detrimento dos demais. Esse tipo de organização social parte do pressuposto de que os direitos são desiguais por natureza, uma vez que os elementos que os caracterizam são definidos fora dos indivíduos - por exemplo, o critério para a definição de cargos e profissões se dava pela hereditariedade (o guerreiro, o sacerdote fariam os seus filhos também guerreiros e sacerdotes). Pode-se dizer que, nas sociedades antigas, a organização social baseava-se no sistema de castas. As desigualdades políticas, jurídicas, religiosas, etc. expressavam-se através do lugar que o indivíduo ocupava na estrutura de cargos e profissões, definidos pela hereditariedade, em primeiro plano. Ainda hoje existe na Índia o sistema de castas, embora modificado, pois coexiste com um sistema de classes sociais; mesmo assim, o estudo dessa sociedade pode nos oferecer vários elementos para a compreensão dessa ordem social. Uma das características que marcaram a estratificação social hindu foi a hereditariedade; o nascimento era a condição básica para se definir uma dada posição na ordem social Os pertencentes à casta inferior eram considerados impuros e não podiam nem sequer prestar serviços aos membros das outras castas superiores. A idéia era de que tudo o que os impuros tocassem ficava contaminado, seja alimento, água ou roupa. Apenas as castas puras (superiores) eram consideradas aptas a desempenhar funções públicas e a participar de determinadas atividades religiosas. As castas impuras eram praticamente segregadas, a elas não sendo permitido freqüentar escolas, templos etc. De forma absolutamente generalizada, é possível dizer que as quatro castas principais na Índia, durante muito tempo, foram: brâmane (casta superior a todas), chátria (casta intermediária formada pelos guerreiros), vaixiá (casta intermediária, mas abaixo da chátria, formada pelos comerciantes, agricultores e pastores) e a sudra ou pária (casta mais inferior), conforme: http://ialexandria.sites.uol.com.br/textos/israel_textos/conceito.htm.
[4] Os muçulmanos acreditam no qadar, uma palavra geralmente traduzida como predestinação, mas cujo sentido mais preciso é "medir" ou "decidir quantidade ou qualidade". Uma vez que para o islão Deus foi o criador de tudo, incluindo dos seres humanos, e sendo uma das suas características a onisciência, ele já sabia quando procedeu à criação as características de cada elemento da sua obra teria. Assim sendo, cada coisa que acontece a uma pessoa foi determinada por Deus, conforme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mul%C3%A7umano#Apredestina.
[5] Posição extremada dos argumentos teológicos do calvinismo. Como o próprio sufixo denota, não se trata da posição doutrinária calvinista. Os calvinistas, inclusive, reputam como não bíblicas as argumentações dos hipercalvinistas, que negam qualquer possibilidade de causa e contingência, e afirmam que o homem jamais possuiu livre-arbítrio, nem mesmo antes da queda, e que foi predestinado para cair.

sábado, 12 de março de 2016

Divórcio e Novo Casamento: Uma Declaração




Pano de fundo e Introdução


Em toda a minha vida adulta, até o momento em que encarei a necessidade de lidar com divórcio e novo casamento no contexto pastoral, sustentei a visão protestante prevalecente, que afirma que o novo casamento após o divórcio é sancionado biblicamente em casos em que o divórcio foi resultado de uma deserção ou de adultério persistente. Somente quando eu fui compelido, alguns anos atrás, ao estudar Lucas, a lidar com a afirmação absoluta de Jesus em Lucas 16.18, comecei a questionar esta posição inerente. Eu senti um peso imenso por ter de ensinar à nossa congregação qual a vontade revelada de Deus neste assunto de divórcio e novo casamento. Eu não estava desavisado que entre meu povo haviam aqueles que se divorciaram-se e casaram-se novamente, aqueles que se divorciaram e permaneceram descasados, e aqueles que estavam em processo de divórcio ou contemplando isto como uma possibilidade. Eu sabia que isto não seria um exercício acadêmico, mas que de imediato afetaria várias pessoas muito profundamente.

Eu também estava ciente das horrendas estatísticas em nosso próprio país, assim como em outros países ocidentais, a respeito do número de casamentos que terminam em divórcio, e do número de pessoas que estão no segundo e terceiro casamentos. Em meu estudo de Efésios 5, fui cada vez mais convencido que há uma profunda significação na união de marido e mulher em “uma só carne” como parábola do relacionamento entre Cristo e sua igreja.

Todas as coisas conspiravam para criar um sentimento de solenidade e seriedade enquanto eu pesava o significado e a implicação dos textos bíblicos sobre divórcio e novo casamento. O resultado desta experiência crucial foi a descoberta do que eu creio, uma proibição neotestamentária de todo novo casamento, exceto no caso em que o cônjuge faleceu. Eu não afirmo que encontrei ou disse a última palavra nesta questão, nem que eu estou além de correção caso prove-se que estou errado. Estou ciente de que homens mais piedosos que eu tiveram opiniões diferentes. Entretanto, todas as pessoas e igrejas devem ensinar e viver de acordo com o que dita sua própria consciência informada por um sério estudo da Bíblia.

Como consequência, este documento é uma tentativa de afirmar meu próprio entendimento deste assunto e seu fundamento na Escritura. Serve, portanto, como uma explanação bíblica do por que me sinto constrangido a tomar as decisões que tomo a respeito daqueles casamentos que realizarei e que tipo de disciplina eclesiástica parece-me apropriada em questões de divórcio e novo casamento.

Se eu desse uma exposição exaustiva de cada texto relevante, esta declaração viraria um gigantesco livro. Assim, o que planejo é trazer algumas explanações breves de cada um dos textos cruciais, como alguns argumentos exegéticos chaves. Haverão, sem dúvida, muitas questões que podem ser levantadas, e eu espero ser capaz de aprender com estas questões, e fazer o meu melhor para respondê-las na discussão que seguirá a esta declaração.

Parece que a forma mais eficiente de iniciar esta questão é simplesmente dar uma lista de razões, baseadas em textos bíblicos, com motivos para eu crer que o Novo Testamento proíbe todos os novos casamentos, exceto quando o cônjuge faleceu. O que se segue é uma lista desses argumentos.


11 razões para eu crer que todo novo casamento após o divórcio é proibido enquanto os cônjuges estiverem vivos


1) Lucas 16.18 nos diz que todo novo casamento após o divórcio é adultério

Lucas 16.18: Qualquer que deixa sua mulher, e casa com outra, adultera; e aquele que casa com a repudiada pelo marido, adultera também.

1.1) Este verso mostra que Jesus não reconhece o divórcio como o término de um casamento aos olhos de Deus. A razão para o segundo casamento ser chamado de adultério é porque o primeiro é considerado ainda válido. Assim, Jesus está tomando uma posição contra a cultura judaica, em que considerava-se que todo divórcio levava ao direito de um novo casamento.

1.2) A segunda metade do versículo mostra que não apenas o homem divorciado é culpado de adultério quando ele casa-se novamente, mas também qualquer homem que casa-se com uma mulher divorciada.

1.3) Uma vez que não há exceções mencionadas no verso, e uma vez que Jesus está claramente rejeitando o conceito cultural comum de que o divórcio inclui o direito ao novo casamento, os primeiros leitores deste evangelho teriam uma grande dificuldade em argumentar qualquer exceção baseada na ideia de que Jesus compartilhava a premissa de que o divórcio por infidelidade ou deserção liberava um cônjuge para um novo casamento.


2) Marcos 10.11-12 chama todo novo casamento após o divórcio de adultério, seja o marido ou a esposa quem se divorcia

Marcos 10.11-12: E ele lhes disse: Qualquer que deixar a sua mulher e casar com outra, adultera contra ela. E, se a mulher deixar a seu marido, e casar com outro, adultera.

2.1) Esse texto repete a primeira metade de Lucas 16.18, mas vai além e diz que está cometendo adultério não apenas o homem que divorcia, mas também a mulher que divorcia, e então casa-se novamente.

2.2) Como em Lucas 16.18, não há exceção mencionada a esta regra.


3) Marcos 10.2-9 e Mateus 19.3-8 ensinam que Jesus rejeitou a justificativa dos fariseus para divórcio em Deuteronômio 24.1 e reafirma o propósito de Deus na Criação, de que nenhum ser humano separe o que Deus uniu.

Marcos 10.2-9: E, aproximando-se dele os fariseus, perguntaram-lhe, tentando-o: É lícito ao homem repudiar sua mulher? 3 Mas ele, respondendo, disse-lhes: Que vos mandou Moisés? 4 E eles disseram: Moisés permitiu escrever carta de divórcio e repudiar. 5 E Jesus, respondendo, disse-lhes: Pela dureza dos vossos corações vos deixou ele escrito esse mandamento; 6 Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea. 7 Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher, 8 E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne. 9 Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.

Mateus 19.3-9: Então chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o, e dizendo-lhe: É lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? 4 Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez, 5 E disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne? 6 Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. 7 Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio, e repudiá-la? 8 Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim. 9 Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério.

3.1) Tanto em Mateus quanto em Marcos, os fariseus vêm a Jesus e o provam ao perguntá-lo se é lícito a um homem divorciar-se de sua esposa. Eles evidentemente tinham em mente a passagem em Deuteronômio 24.1, que simplesmente descreve o divórcio, ao invés de dar qualquer legislação a favor disto. Eles se perguntam como Jesus se posicionará a respeito desta passagem.

3.2) A resposta de Jesus é “Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres” (Mt 19.8)

3.3) Mas então Jesus critica a falha dos fariseus em reconhecer nos livros de Moisés a intenção original e mais profunda de Deus para o casamento. Então ele cita duas passagens de Gênesis. “Homem e mulher [Deus] os criou... Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.” (Gn 1.27; 2.24)

3.4) Destas passagens de Gênesis, Jesus conclui: “Assim não são mais dois, mas uma só carne”. E então, ele faz sua afirmação decisiva: “O que Deus ajuntou não o separe o homem”

3.5) A implicação é que Jesus rejeita o uso de Deuteronômio 24.1 dos fariseus e apresenta o padrão de casamento para seus discípulos na intenção original de Deus na Criação. Ele diz que nenhum de nós deveria tentar desfazer a relação “uma só carne” que Deus uniu.

3.6) Antes de pularmos para a conclusão de que esta afirmação absoluta deveria ser qualificada em vista da cláusula de exceção (“não sendo por causa de prostituição”) mencionada em Mateus 19.9, devemos seriamente aceitar a possibilidade de que a cláusula de exceção em Mateus 19.9 deveria ser entendida à luz da afirmação absoluta de Mateus 19.6, (“não o separe o homem”), especialmente porque os versículos que seguem esta conversação com os fariseus em Marcos não contêm qualquer exceção quando condenam um novo casamento. Mais sobre isso abaixo.


4) Mateus 5.32 não ensina que o novo casamento é lícito em alguns casos. Pelo contrário, reafirma que casamento pós-divórcio é adultério, mesmo para aqueles que divorciaram-se inocentemente, e que um homem que divorcia-se de sua esposa é culpado de adultério do segundo casamento dela, a não ser que ela já tenha se tornado adúltera antes do divórcio.

Mateus 5.32: Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério, e qualquer que casar com a repudiada comete adultério.

4.1) Jesus assume que em muitas situações naquela cultura, a esposa que foi repudiada por um marido será encaminhada para um segundo casamento. No entanto, a despeito desta pressão, Jesus chama este segundo casamento de adultério.

4.2) O que chama atenção na primeira metade deste versículo é que o novo casamento de uma esposa que foi inocentemente repudiada é ainda assim um adultério: “qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela (a esposa inocente que não foi infiel) cometa adultério”. Esta é uma afirmação clara, como me parece, de que o novo casamento é errado não simplesmente quando uma pessoa é culpada no processo de divórcio, mas também quando uma pessoa é inocente. Em outras palavras, a oposição de Jesus ao novo casamento parece ser baseada na indestrutibilidade da união do casamento, a não ser pela morte.

4.3) Eu deixarei minha explanação da cláusula de exceção (“a não ser por causa de prostituição”) para mais adiante na declaração, mas por enquanto, é suficiente dizer, sobre a interpretação tradicional da cláusula, que simplesmente significa que um homem faz de sua esposa uma adúltera exceto no caso em que ela fez a si própria uma.

4.4) Eu assumo que, uma vez que uma esposa inocente que é divorciada comete adultério quando ela casa-se novamente, segue-se que uma esposa culpada que casa-se novamente após o divórcio torna-se muito mais culpada. Se alguém argumentar que esta esposa culpada é livre para casar-se novamente, enquanto a inocente que foi repudiada não é, já que o adultério da culpada quebrou o relacionamento de “uma só carne”, então esta pessoa deve colocar-se na inconveniente posição de dizer à divorciada inocente que “se agora você cometer adultério, será lícito você casar-se novamente”. Isto parece ser errado por pelo menos duas razões.

4.4.1) Isto parece elevar o ato físico de relação sexual ao elemento decisivo em união e separação conjugal.

4.4.2) Se a união sexual com outro quebra os laços de casamento e legitima o novo casamento, então dizer que uma divorciada inocente não pode casar-se novamente (como Jesus realmente diz) assume que o marido divorciado dela não está se divorciando para ter relações sexuais com outra. Isto significa assumir uma postura muito improvável. Mais provável é que Jesus assuma que alguns desses maridos divorciados terão relações sexuais com outra mulher, mas ainda assim as esposas de quem eles se divorciaram não podem casar-se novamente. Portanto, adultério não anula o relacionamento de “uma só carne” do casamento, e tanto o cônjuge culpado quanto o inocente são proibidos de casar-se novamente em Mateus 5.32.


5) 1 Coríntios 7.10-11 ensina que o divórcio é errado, porém se é inevitável, a pessoa que se divorcia não deve casar-se novamente.

1 Coríntios 7.10-11: Todavia, aos casados mando, não eu mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido. 11 Se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou que se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher.

5.1) Quando Paulo diz que esta ordem não é sua, mas do Senhor, eu acredito que ele quer dizer que está ciente de um específico dito do Jesus histórico que trata desta questão. Como prova, estes versos parecem-se muito com Marcos 10.11-12, porque é destinado tanto ao marido quanto à esposa. Além disso, o novo casamento parece ser excluído do verso 11, da mesma forma que é excluído em Marcos 10.11-12

5.2) Paulo parece saber que a separação será inevitável em alguns casos. Talvez ele tenha em mente uma situação de um adultério sem arrependimento, ou deserção, ou brutalidade. Mas em um caso assim, ele diz que a pessoa que se sente constrangida à separar-se não deveria procurar um novo casamento e deveria permanecer solteira. E ele reforça a autoridade desta instrução ao dizer que ele tem uma palavra do Senhor. Portanto, a interpretação dos dizeres de Jesus é que um novo casamento não deve ser procurado.

5.3) Como em Lucas 16.18, Marcos 10.11-12 e Mateus 5.32, o texto não explicita consideração sobre a possibilidade de qualquer exceção à proibição do novo casamento.


6) 1 Coríntios 7.39 e Romanos 7.1-3 ensinam que o novo casamento é lícito somente depois da morte do cônjuge.

1 Coríntios 7.39: A mulher casada está ligada pela lei todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor.

Romanos 7.1-3: Não sabeis vós, irmãos (pois que falo aos que sabem a lei), que a lei tem domínio sobre o homem por todo o tempo que vive? 2 Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido. 3 De sorte que, vivendo o marido, será chamada adúltera se for de outro marido; mas, morto o marido, livre está da lei, e assim não será adúltera, se for de outro marido.

6.1) Em ambas as passagens (1 Coríntios 7.39; Romanos 7.2) é dito explicitamente que uma mulher está ligada ao marido enquanto ele viver. Nenhuma exceção é explicitamente mencionada que sugeriria que ela pudesse ser livre de seu marido e casar-se com outro usando outra base.


7) Mateus 19.10-12 ensina que uma graça cristã especial é dada por Deus a discípulos que sustentam-se na vida de solteiro, quando renunciam casar-se novamente de acordo com a lei de Cristo.Mateus 19.10-12: Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. 11 Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. 12 Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o.

7.1) Logo antes desta passagem, em Mateus 19.9, Jesus proibiu todos casamento após o divórcio (eu lidarei com o significado de “não sendo por causa de prostituição” abaixo). Isto pareceu como uma proibição intolerável aos discípulos de Jesus: se você fechar qualquer possibilidade de novo casamento, então você faz o casamento tão arriscado que seria melhor não casar-se, uma vez que ou você está “preso” a viver como um solteiro o resto de sua vida ou você estará “preso” em um casamento ruim.

7.2) Jesus não nega a tremenda dificuldade deste mandamento. Pelo contrário, ele diz no verso 11 que a capacidade de cumprir o mandamento de não casar-se novamente é um dom divino aos seus discípulos. Verso 12 é um argumento de que uma vida assim é de fato possível, porque existem pessoas que por amor ao Reino, e também por razões menores, dedicaram-se a si mesmas para viver uma vida de solteiro.

7.3) Jesus não está dizendo que alguns de seus discípulos têm a habilidade de obedecer este casamento de não casar-se novamente e outros não. Ele está dizendo que a marca de um discípulo é que eles receberão um dom de contingência, enquanto não-discípulos não. A evidência para isto é que 1) o paralelo entre Mateus 19.11 e 13.11; 2) O paralelo entre Mateus 19.12 e 13.9,43 e 11.15; e 3) o paralelo entre Mateus 19.11 e 19.26.


8) Deuteronômio 24.1-4 não legisla base para o divórcio, mas ensina que o relacionamento “uma só carne” estabelecido pelo casamento não é destruído pelo divórcio e mesmo pelo novo casamento.Deuteronômio 24.1-4: Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa. 2 Se ela, pois, saindo da sua casa, for e se casar com outro homem, 3 E este também a desprezar, e lhe fizer carta de repúdio, e lha der na sua mão, e a despedir da sua casa, ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, 4 Então seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a tomá-la, para que seja sua mulher, depois que foi contaminada; pois é abominação perante o Senhor; assim não farás pecar a terra que o Senhor teu Deus te dá por herança.

8.1) O que chama atenção nestes quatro versos é que, enquanto o divórcio é garantido, ainda assim a mulher divorciada torna-se “contaminada” por seu novo casamento (verso 4). Pode muito bem ser que, quando os fariseus perguntaram a Jesus se o divórcio era legítimo, ele baseou sua resposta negativa não somente na intenção de Deus expressa em Gênesis 1.27 e 2.24, mas também em Deuteronômio 24.4, em que o novo casamento pós-divórcio contamina a pessoa. Em outras palavras, existiam várias pistas na lei mosaica de que a concessão do divórcio era baseada na dureza do coração humano, e realmente não tornavam o divórcio e o novo casamento legítimos.

8.2) A proibição da esposa retornar ao seu primeiro marido mesmo depois que o segundo marido morrer (porque é uma abominação) sugere muito fortemente que nem o segundo casamento deveria ser rompido a fim de restaurar o primeiro (para a explanação de Heth e Wenham disto, veja Jesus and Divorce, p. 110).


9) 1 Coríntios 7.15 não quer dizer que, quando um cristão é abandonado por um cônjuge incrédulo, ele está livre para casar-se novamente. Significa que o cristão não está obrigado a lutar a fim de preservar a união. Separação é permissível se o parceiro incrédulo insiste nisso.1 Coríntios 7.15: Mas, se o descrente se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou irmã, não esta sujeito à servidão; mas Deus chamou-nos para a paz.

9.1) Existem muitas razões para que a frase “não está sujeito à servidão” não deveria ser construída para significar “é livre para casar-se novamente”

9.1.1) Casamento é uma ordenança da Criação ligando todas as criaturas humanas de Deus, a despeito de sua fé ou falta de fé

9.1.2) A palavra usada para “servidão” (douloo) no verso 15 não é a mesma palavra usada no verso 39, em que Paulo diz: “A mulher casada está ligada (deo) pela lei todo o tempo que o seu marido vive”. Paulo consistentemente usa deo quando fala do aspecto legal de ser ligado a um cônjuge (Romanos 7.2; 1 Coríntios 7.39), ou comprometido com alguém (1 Coríntios 7.27). Mas quando ele refere-se a uma esposa abandonada não estar ligada em 1 Coríntios 7.15, ele escolhe uma palavra diferente (douloo), que esperaríamos que ele fizesse já que ele não está dando a um cônjuge abandonado a mesma liberdade para casar-se novamente como ele dá ao cônjuge cujo parceiro morreu (verso 39).

9.1.3) A última frase do verso 15 (“Deus chamou-nos para a paz”) suporta o verso 15 melhor se Paulo está dizendo que um parceiro abandonado não é “obrigado a fazer guerra” contra o incrédulo desertor para que ele ou ela permaneça. Me parece que a paz que Deus tem nos chamado é a paz da harmonia matrimonial. Portanto, se o parceiro incrédulo insiste em afastar-se, então o parceiro crente não está obrigado a viver em conflito perpétuo com o cônjuge incrédulo, mas é livre e inocente para deixá-lo(a) partir.

9.1.4) Esta interpretação também preserva uma harmonia fiel com a intenção dos versos 10-11, em que a separação inevitável não resulta no direito de um novo casamento.


10) 1 Coríntios 7.27-28 não ensina o direito das pessoas divorciadas a casarem-se novamente. Ensina que virgens noivos devem seriamente considerar a vida de solteiro, mas que eles não pecam se se casarem.1 Coríntios 7.27-28: Estás ligado à mulher? não busques separar-te. Estás livre de mulher? não busques mulher. 28 Mas, se te casares, não pecas; e, se a virgem se casar, não peca. Todavia os tais terão tribulações na carne, e eu quereria poupar-vos.

10.1) Recentemente algumas pessoas têm argumentado que esta passagem lida com pessoas divorciadas, porque no verso 27 Paulo pergunta: “Estás livre de mulher?”. Alguns assumem que ele quer dizer “Estás divorciado?”. Portanto o que ele estaria dizendo no verso 28 é que não é pecado quando pessoas divorciadas casam-se novamente. Existem muitas razões para esta interpretação ser a mais improvável.

10.1.1) O verso 25 sinaliza que Paulo está começando uma nova seção e lidando com uma nova questão. Ele diz “Ora, quanto às virgens (ton parthenon) não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, o meu parecer, como quem tem alcançado misericórdia do Senhor para ser fiel”. Ele já lidou com o problema das pessoas divorciadas nos versos 10-16. Agora ele toma uma nova questão, sobre aqueles que ainda não são casados, e ele sinaliza isso ao dizer “Ora, quanto às virgens”. Portanto, é muito improvável que as pessoas referidas nos versos 27 e 28 sejam as divorciadas.

10.1.2) Uma afirmação simples de que não é pecado para as pessoas divorciadas casarem-se novamente (verso 28) contradiz o verso 11, em que é dito que uma mulher que se separou de seu marido deveria permanecer solteira.

10.1.3) Verso 36 certamente está descrevendo a mesma situação em vista nos versos 27 e 28, mas claramente refere-se a um casal que ainda não é casado. “Mas, se alguém julga que trata indignamente a sua virgem, se tiver passado a flor da idade, e se for necessário, que faça o tal o que quiser; não peca; casem-se”. Isto é o mesmo do verso 28, em que Paulo diz “Mas, se te casares, não pecas”.

10.1.4) A referência no verso 27 a ser ligado à “mulher” pode ser mal-entendida porque pode sugerir que o homem já é casado. Mas no grego, a palavra para esposa é simplesmente “mulher” e pode referir-se tanto à noiva de um homem quanto à sua esposa. O contexto dita que a referência é à noiva virgem de um homem, não à sua esposa. Assim, “Estás ligado à mulher” e “Estás livre de mulher?” tem de fazer referência a uma pessoa que é noiva ou não.

10.1.5) É significante que o verbo que Paulo usa para “estás livre” (luo) não é uma palavra que ele usa para divórcio. As palavras de Paulo para divórcio são chorizo (versos 10,11,15; cf. Mateus 19.6) e aphelia (versos 11,12,13).


11) A cláusula de exceção de Mateus 19.9 não precisa implicar que o divórcio em caso de adultério libera uma pessoa a casar-se novamente. Todo o peso das evidências dadas pelo Novo Testamento nos dez pontos anteriores é contra esta visão, e existem várias formas de fazer um bom julgamento deste verso, de forma que ele não entre em conflito com o ensinamento geral do Novo Testamento de que um novo casamento após o divórcio está proibido.Mateus 19.9: Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério.

11.1) Há muitos anos atrás eu ensinei nossa congregação em dois cultos noturnos a respeito do meu entendimento deste verso e argumentei que “não sendo por causa de prostituição” não se refere ao adultério, mas à fornicação sexual antes do casamento que um homem ou uma mulher descobre no noivo. Desde que descobri outras pessoas que sustentam essa visão e que deram uma exposição muito mais acadêmica que eu fiz, tenho também descoberto numerosas outras formas de entender que este verso também exclui a legitimidade do novo casamento. Muitas delas estão sumarizadas em Jesus and Divorce, William Heth e Gordon J. Wenham (Nelson:1984).

11.2) Aqui eu simplesmente darei um resumo breve de meu próprio ponto de vista de Mateus 19.9 e como cheguei a ele.

Eu comecei, primeiramente, ao ser incomodado pela forma absoluta da denúncia de Jesus contra o divórcio e o novo casamento em Marcos 10.11,12 e Lucas 16.18 não está preservado em Mateus, se na verdade esta cláusula de exceção é uma brecha para o divórcio e novo casamento. Eu estava incomodado pela simples ideia que tantos escritores fazem, de que Mateus simplesmente está tornando explícito algo que era implicitamente entendido pelos ouvintes de Jesus ou os leitores de Marcos 10 e Lucas 16.

Eles realmente teriam assumido que as afirmações absolutas incluíam exceções? Eu duvido muito, e portanto minha inclinação é questionar se de fato ou não a exceção de Mateus conforma-se com o absoluto de Marcos e Lucas.

A segunda coisa que começou a me incomodar foi a questão – Por que Mateus usa a palavra porneia (“não sendo por causa de prostituição”) ao invés da palavra moicheia , que significa adultério? Quase todos os comentaristas parecem simplesmente presumir que porneia significa adultério neste contexto. A questão que persistia era por que Mateus não usaria a palavra para adultério, se isto fosse o que ele realmente queria dizer.

Então notei algo muito interessante. O único outro lugar, além de 5.32 e 19.9, em que Mateus usa a palavra porneia é em 15.19, onde é usada ao lado de moicheia . Portanto, é a evidência contextual primária para o uso de Mateus é que ele concebe porneia como algo diferente de adultério. Poderia isto significar, então, que Mateus concebe porneia em seu sentido normal de fornicação ou incesto (1 Coríntios 5.10), ao invés de adultério?

A. Isaksson concorda com esta visão de porneia e apresenta sua pesquisa, parecida com esta, nas páginas 134 e 135 de Marriage and Ministry:

Portanto, não podemos fugir do fato de que a distinção entre o que era considerado como porneia e o que era considerado como moicheia foi minuciosamente mantido na literatura judaica pré-cristã e no NT. Porneia pode, é claro, denotar diferentes formas de relações sexuais proibidas, mas não podemos encontrar exemplos inequívocos do uso desta palavra para denotar o adultério conjugal. Sob estas circunstâncias dificilmente poderíamos assumir que esta palavra significa adultério na cláusula em Mateus. A logia do divórcio foi escrita como um parágrafo da Lei, intentando ser obedecida pelos membros da Igreja. Debaixo destas circunstâncias é inconcebível que, em um texto desta natureza, o autor não tivesse mantido uma clara distinção entre o que era a falta de castidade e o que era adultério: moicheia e não porneia seria usada para descrever o adultério da esposa. Do ponto de vista filológico existem argumentos fortíssimos contra esta interpretação da cláusula permitindo divórcio no caso da esposa ser culpada de adultério.

A próxima pista de minha busca por uma explicação veio quando estudei sobre o uso de porneia em João 8.41, em que os líderes judeus indiretamente acusam Jesus de ser nascido de porneia . Em outras palavras, uma vez que eles não aceitava o nascimento virginal, assumem que Maria havia cometido fornicação, e Jesus era resultado deste ato. Com base nesta pista, eu voltei para estudar o registro de Mateus do nascimento de Jesus em Mateus 1.18-20. Isto foi extremamente elucidador.

Nesses versos, José e Maria são referidos como marido (aner) e esposa (gunaika). Ainda assim, eles são descritos como noivos somente. Isto provavelmente vem do fato de que as palavras para marido e esposa eram simplesmente homem e mulher, e do fato de que o noivado era um comprometimento muito mais significante do que é hoje. No verso 19, José resolve “divorciar-se” de Maria. A palavra para “deixá-la” é a mesma palavra de Mateus 5.32 e 19.9. Mas, mais importante que tudo, Mateus diz que José foi “justo” ao tomar a decisão de divorciar-se de Maria, presumivelmente por causa de porneia , fornicação.

Portanto, enquanto Mateus procede em construir a narrativa de seu Evangelho, ele encontra-se no capítulo 5 e depois no capítulo 19 precisando proibir todo casamento pós-divórcio (como ensinado por Jesus) e ainda permitir “divórcios” como aquele que José considerou como possibilidade, por pensar que sua noiva era culpada de fornicação ( porneia ). Assim, Mateus inclui a cláusula de exceção em particular para exonerar José, mas também no geral para apresentar que o tipo de “divórcio” que alguém talvez procure durante um noivado por causa de fornicação não está incluído na proibição absoluta de Jesus.

Uma objeção comum a esta interpretação é que em Mateus 19.3-8 e Mateus 5.31-32, a questão que Jesus responde é sobre casamento e não sobre noivado. O argumento é que “não sendo por causa de prostituição” é irrelevante no contexto do casamento.

Minha resposta é que esta irrelevância é simplesmente o ponto aonde Mateus quer chegar. Podemos ter por certo que o rompimento de um casal de noivos por causa de fornicação não é um “divórcio” ruim e não proíbe um outro casamento. Mas não podemos assumir que os leitores de Mateus tinham isso por certo.

Mesmo em Mateus 5.32, que parece sem importância para nós excluir o caso da fornicação (uma vez que não podemos ver como uma virgem noiva poderia ser feita adúltera), isto poderia não ser inútil para os leitores de Mateus. Na verdade, não deveria ser sem importância para nenhum leitor: se Jesus tivesse dito “todo homem que se divorciar de sua mulher faz dela uma adúltera”, um leitor legitimamente poderia perguntar “Então José estava pra fazer de Maria uma adúltera?”. Podemos dizer que esta questão não é razoável, uma vez que acreditamos que você não pode fazer mulheres solteiras serem adúlteras. Mas, certamente isto não é sem propósito ou, talvez para alguns leitores, inútil, pois Mateus fez explícita a óbvia exclusão do caso de fornicação durante o noivado.


Esta interpretação da cláusula de exceção tem sérias vantagens:

1. Não força Mateus a contradizer o significado claro e absoluto de Marcos e Lucas, e o inteiro ensinamento do Novo Testamento apresentado nas seções 1-10, incluindo o próprio ensinamento absoluto de Mateus em 19.3-8

2. Provê uma explicação de por que a palavra porneia é usada na cláusula de exceção de Mateus ao invés de moicheia. 

3. Concorda com o uso do próprio Mateus de porneia para fornicação em Mateus 15.19 

4. Encaixa-se com a necessidade do contexto maior de Mateus a respeito de José considerar o divórcio 

Desde a primeira vez que escrevi esta exposição de Mateus 19.9 descobri um capítulo com esta visão em Heth e Wenham, Jesus and Divorce , e uma defesa acadêmcia disto em A. Isaksson, Marriage and Ministry in New Temple (1965).


Conclusão e Aplicação


No Novo Testamento, a questão sobre o novo casamento pós-divórcio não é determinada por:

1. A culpa ou inocência de qualquer cônjuge

2. Nem se qualquer cônjuge é crente ou não 

3. Nem pelo caso do divórcio ter acontecido antes ou depois da conversão de qualquer dos cônjuges

4. Nem pela facilidade ou dificuldade de viver como solteiro pelo resto da vida na Terra

5. Nem se há adultério ou deserção envolvidos 

7. Nem por permissividade cultural da sociedade em redor 

6. Nem pela realidade da dureza do coração humano 


Pelo contrário, é determinado pelo fato de que:

1. Casamento é um relacionamento de “uma só carne” estabelecido por Deus e de extraordinária significância aos olhos de Deus (Gênesis 2.24; Mateus 19.5; Marcos 10.8)

2. Somente Deus, não o homem, pode terminar esta relação de “uma só carne” (Mateus 19.6; Marcos 10.9 – isto é porque o novo casamento é chamado de adultério por Jesus: ele assume que o primeiro casamento ainda está valendo, Mateus 5.32; Lucas 16.18; Marcos 10.11)

3. Deus termina o relacionamento de “uma só carne” somente por meio da morte de um dos cônjuges (Romanos 7.1-3; 1 Coríntios 7.39)
4. A graça e o poder de Deus são prometidos e são suficientes para capacitar um cristão divorciado e fiel a ser solteiro por toda sua vida terrena, se necessário (Mateus 19.10-12,26; 1 Coríntios 10.13) 

5. Frustrações temporárias e desvantagens são muito mais preferíveis que a desobediência do novo casamento, e produzirá profunda e duradoura alegria tanto nesta vida como na vida porvir. 


Nota: Os leitores desta declaração devem ter certeza de consultarem a declaração oficial do Concílio de Diáconos da Igreja Batista Bethlehem, intitulado A Statement on Divorce and Remarriage in the Life of Bethlehem Baptist Church. Este documento, datado de 2 de maio de 1989, apresenta a posição sobre divórcio e novo casamento que guiará a igreja em questões de membresia e disciplina. A declaração que você tem em mãos NÃO é a posição oficial da igreja sobre divórcio e novo casamento. É o meu próprio entendimento das Escrituras e portanto as linhas-mestras para minha própria vida, ensinamentos e envolvimento ministerial em casamentos. Mas eu pretendo respeitar a declaração oficial (cujo primeiro rascunho foi escrito por mim mesmo) como nosso guia em questões de membresia e disciplina. Eu faço esta declaração acessível para que a base de certas afirmações da declaração oficial possam ser facilmente obtidas.

por John Piper
Traduzido por: Josaías Cardoso Agradecemos ao tradutor, que gentilmente se dispôs a traduzir esse artigo para o site Monergismo.com. Este artigo é parte integrante do portal http://www.monergismo.com

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